sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Para o Segundo Filho de Uma Mãe, Amigos, Colegas ou quem se identificar...



Não é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta, só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranqüilidade.
É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego.
Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se entregar a sua meditação e a sua prece. Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a viver montado em lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade forçada de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos, hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa: o banheiro.
Se não lhe batem à porta outros homens (pois um lar, por definição, é composto de mulher, marido, filho, filha e um ou outro parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e morais, ele, ali, e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona, se reflete, se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere, assalta...
...Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma careta equívoca no espelho do banheiro, nem existe ninguém que nunca tenha tido um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria. Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem dispostos.
O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o corpo do homem moderno, e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento da solidão ocasional.
Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu ultimo espelho que é o propriamente dito.
Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!

Retirado do Livro Lições de um Ignorante de Millôr Fernandes:(O Banheiro/17)- de 1967.

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