quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Livros...


O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que as bibliotecas estão povoadas de espíritos, pois livros são como sarcófagos onde hibernam as almas dos autores. Sim, gênios literários são capazes de derramar a essência do próprio espírito nas entrelinhas dos textos. Da viscosidade das narrativas emergem idéias e sensações que, ao serem interpretadas na leitura, ressuscitam e flutuam pela nossa imaginação, passando a iluminar as profundezas de nossa inconsciência. É por isso que grandes escritores tornam-se imortais. Eles renascem em pedaços a cada lampejo de nossa inteligência no exercício da leitura de suas obras.
Quando nos debruçamos sobre um livro e nos deixamos hipnotizar pelo espírito do autor, somos levados, passo a passo, a um labirinto de experiências novas que magnetizam nossa alma e inspiram nossa percepção. Através da literatura percebemos constelações de realidades invisíveis e enxergamos a multiplicidade de possibilidades da vida; mas é imprescindível travar esse contato na juventude, de preferência antes dos 20 anos, pois nesse período nossa alma ainda está fresca, maleável, sedenta de vida e repleta de eletricidade. Velhos têm a alma seca, dura, enfastiada e escura. Tornar-se adulto sem mergulhar na literatura embrutece a alma. Quem passa pela vida sem curtir a experiência literária deixa de vivenciar uma das sutilezas mais delicadas do espírito humano.
Quando falo de literatura em sala de aula, meus alunos sempre me cobram sugestões para iniciar-se nessa descoberta. Eis aí, então, uma pequena lista de alguns escritores que fizeram minha cabeça na adolescência. Na verdade, eles mais me perturbaram do que ofereceram respostas; mas é justamente por isso que são bons: é assim que eles ensinam a pensar. Deixei de lado os autores que li depois dos 20, pois a idéia aqui é dizer coisas que de fato interessem a uma jovem mente inquieta. Evidentemente, prefiro mencionar escritores, e não as obras, porque a essência de cada autor dificilmente se reduz a um livro só. Por fim, se cada um deles me ensinou alguma coisa diferente, não quer dizer que ensinem as mesmas coisas a outros leitores. A lista é totalmente anárquica; os escritores se sucedem de acordo com as regras secretas de minha memória. Sugiro que você leia com calma, parando de autor em autor, para refletir bravamente sobre cada uma das provocações. É assim que se faz.
Pois bem, com William Burroughs aprendi que não devemos acreditar em ninguém nem tampouco duvidar do que quer que seja. Com Gabriel García-Marquez, que a ficção é mais real que essa fantasia que chamamos de realidade. Com Jorge Castañeda, que o mundo é muito mais colorido do que suportam os olhos. Com Lewis Carrol, que a lógica da realidade é incoerente, mas as coisas são assim mesmo. Com Jorge Luis Borges, que o enigma é perene, pois a mente humana é um labirinto de espelhos.
Dostoievski me mostrou que somos povoados por demônios: nossos maiores inimigos estão dentro de nós mesmos. Com Montaigne, aprendi que filosofar é aprender a morrer. Com Nabokov, percebi que a inocência pinta o demônio de rosa. Com Voltaire, que o otimismo aleija. Com Turgeniev, que amor e rancor tropeçam no baile da rima. Brönte iluminou com trevas as profundezas do amor. Com Choderlos de Laclos, aprendi que a paixão é um suicídio no abismo.
Com George Simenon percebi que os homens perspicazes não fazem mais que tatear suas dúvidas até que o acaso ilumine uma intuição. Com Oswald de Andrade descobri que um intelectual é um canibal. Com Millôr Fernandes aprendi que quando a gente menos espera, o óbvio nos surpreende. Com Aldous Huxley, que o mundo é do tamanho de nossa percepção. Ele me mostrou também que pensar é um enorme prazer. Com Oscar Wilde, aprendi que a melhor maneira de se livrar de uma tentação é cedendo a ela. Com Jack Kerouac, que o improviso da vagabundagem é o supra-sumo da criatividade selvagem. Com Campos de Carvalho, que a lucidez é um disfarce da loucura.
Com Tolstoi, percebi que o caráter é a maior medida do homem. Com Herman Hesse, que é preciso subir as escadas do inferno para alcançar o céu. Com Gogol, que o humano é um animal ridículo, do berço ao caixão. Com Nietzsche, que o projeto humano é superar-se ao infinito. Com Salinger, que a autoconfiança se ergue sob um pântano de insegurança. A propósito, se eu devesse indicar apenas um livro a um adolescente, sugeriria O Apanhador no campo de centeio, de Salinger.
Com George Orwell aprendi que podemos ser controlados feito um pacote de presunto se deixarmos os políticos apropriarem-se do poder do Estado. Com Mário de Andrade, que o Brasil não tem história: tem rapsódia. Com Mário Quintana, que o autodidata é um ignorante por conta própria (que na minha opinião, ainda é melhor que o ignorante graduado...).


Com Fernando Pessoa, aprendi que o homem é divino mesmo sem a existência de Deus. Com Saramago, que o limite entre o homem e a besta é um fio de ficção. Com Rachel de Queiroz, que a mulher é um gigante amedrontado. Com Kafka, que quando o inacreditável torna-se comum, nossa sensibilidade se anestesia. Com Paulo Leminski aprendi que a poesia pode te virar do avesso. Com o Chacal, que poesia é caso de polícia. Com Allen Ginsberg, que a poesia é um entorpecente. Com Rimbaud, que a poesia, afinal, é inútil como a vida...

Chega. Esses foram alguns dos autores básicos de minha iniciação literária. Depois vieram muitos outros – Guimarães Rosa, Mário Palmério, Lobo Antunes, Philip Roth etc... – que ainda me acompanham no meu amadurecimento. No entanto, sei que nada se compara em grandeza e intensidade com tudo aquilo que ainda não li. A literatura é uma fonte mágica que, quanto mais se bebe, mais seca fica a garganta. Quanto mais livros devoramos, mais famintos ficamos. Quanto mais caminhamos, maior o labirinto..

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